Este post foi escrito a meias entre a zona de espera do pediátrico e o sossego do lar. Pensei que fosse escrito, relido, editado e postado enquanto esperava, mas entre o P a cirandar e a espera que nem foi muita (amen!), ficou a meio.
Mas pensei eu, com os meus botões, nesta primeira (e espero que única!) visita de estudo ao H. Pediátrico, que levamos com um banho de realidades paralelas mas não tão distantes, assim, tau tau, em cada passo que se dá por aqueles corredores. Na sala estavam miúdos contentes e descansados como o Pedro, mas também estavam miúdos prostrados, outros com limitações físicas, outros paralisados, outros obesos, outros em cadeiras de rodas, outros agitados. Todos nós juntos, à espera cada um da sua consulta. Realidades tão diversas, tão paralelas e juntas, mas sem se tocarem. Cada miúdo com a sua mãe, cada cabeça de mãe com a mesma preocupação, mas por motivos tão diferentes entre si, situados em pontos da escala tão injustamente desfasados. Se o Mundo fosse um sítio de jeito, a escala de gravidade das doenças dos miúdos tinha três ou quatro pontos, entre o tossqueiro e a febrezita de gripe sazonal. Nada mais que isso.
Mas não. Enquanto procurávamos o nosso poiso, passámos por corredores com desenhos nas janelas, quadros a relatar as actividades dos miúdos internados, flores recortadas e com dizeres didáticos e divertidos. Tudo para mitigar a animosidade do sítio, para suavizar o impacto da queda de quem por lá anda, para trazer alguma normalidade, algum mundo de fora para aquelas paredes.
Um dos momentos mais marcantes da minha infância foi um fim-de-semana em que fiquei internada num hospital pediátrico por suspeitas de meningite. Estávamos na Áustria e Chernobyl tinha sido há um mês, e calhou-me ter estado engripada logo nessa altura. Por suspeita e precaução, fiquei internada para uma punção lombar. Doeu como o caraças! De repente, separaram-me dos meus pais, levaram-me em cadeira de rodas para outra sala, despiram-me em cima de uma maca metálica, deram-me um banho de esponja, meteram uma agulhona nas costas e estive umas boas eternidades com dores horríveis nas costas. Estive numa enfermaria de meninas a ver os meninos por entre os vidros a fazer lutas de almofadas. No dia seguinte quiseram fazer-me um raio x. A caminho da sala do raio-x passei por salas com encubadoras, meninos queimadinhos de alto a baixo, nus, com a pele toda empolada. Meninas que choravam, pernas no ar. Quando chegámos à sala foi a minha vez, abri um berreiro tão grande que não houve raio-x para ninguém. Se eu me debatia tanto, estaria tudo bem, penso eu agora. Quando os meus pais vieram visitar foi uma alegria, trouxeram presentes, a minha Barbie recauchutada e na volta, até ganhei um cacto da vizinha de cima! Foi uma aventura, depois da angústia. Durante imenso tempo pensei que lá tivesse estado um mês, apenas à medida que ia crescendo é que fui situando o rápido desenrolar dos acontecimentos.
Não havia nada que definitivamente pudesse ter feito esquecer ou tornar divertida essa experiência, não há como. Mas o esforço, vejo eu hoje, enquanto adulta que entra num pediátrico a fazer uma ideia do que verdadeiramente lá se passa, é muito. Aqueles apontamentos de cor e diversão são um eufemismo em forma de gente, tentar mitigar uma realidade má. Mostrar que ali há afectos, que ali há crianças, que a alegria vem sempre à tona. A cada passo somos confrontados com a luta pela normalidade, pela saúde, pela vida no início da vida.
Finalmente chamaram-nos e fui a correr com o P para a nossa consulta. E depois, prego a fundo e voltemos a casa sem demora. Nem uma hora, nem um fim-de-semana, nem um mês.
Fotografia: Marta José
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